terça-feira, 23 de outubro de 2012

o pedestre e a esquina

parado em uma esquina
o carro em ponto morto
eu vejo um homem de terno
em um terreno baldio ao lado
lutando para agarrar um
quero-quero.
ele corre de um lado para o outro.
pula muito baixo, abre os braços
como se fosse alcançá-lo
e acaba caindo
deixando as calças cairem da cintura
um pouco.
logo ele está de pé
e corre para o outro lado do terreno
atrás, ainda, do quero-quero.
no meio do caminho
a calça tranca suas pernas como uma pedra,
ali, na metade do caminho,
e ele cai mais uma vez.

levanta-se, e sai caminhando devagar para a calçada
ele ri e tem um pouco de trabalho com o cinto.

então,
eu escuto as buzinas
milhares delas
milhares de buzinas atrás de mim
e olho para o carro ao meu lado,
que também continua parado.

um velho de óculos escuros
e bigode sorri para mim.
seu sorriso de 70 anos apenas
parece dizer
que loucura isso tudo.

nós deixamos o homem de terno atravessar
a rua
ignorando as buzinas
e as buzinas e as pessoas atrás das buzinas.
e antes de arrancar,
o velho abaixa o vidro e diz:
o único homem sensato que eu vi hoje.

eu concordo com a cabeça.
ele dobra à direita
e eu vou reto.
as buzinas param
as buzinas
bem longe
param

porque
às vezes
é tão estranho o que
une as
pessoas.

domingo, 21 de outubro de 2012

cachorro

é sempre início da madrugada quando eles começam a latir.
primeiro um cachorro despretensioso, então outro o acompanha
e em seguida mais um e outro e outro
e logo 
são centenas de cachorros latindo.
e eu olho para a rua pela minha janela, e não vejo nada. Nenhum
cachorro. Mas os uivos e latidos me atingem como um tsunami
de sons.
e eu penso sobre isso.


não acho que eles digam alguma coisa
não imagino um cachorro comentando
sobre a alta das ações
ou sobre a brutalidade de todas nossas atividades cotidianas.
acredito que os cachorros só lamentam
gritam por contato
uivos de mémorias e solidão
querem pular uns sobre os outros
quererem correr juntos
cheirar outros rabos
mijar em novos postes.
eu penso sobre isso.

e
os latidos ficam cada vez mais altos.
mais melancólicos. mais doces e suaves,
como um homem que já não consegue
chorar.
e eu me sinto muito bem
porque
agora 
eu não consigo chorar:
nem com todos esses latidos
esse lamento 
essa impossibilidade de pular sobre as grades 
e correr.

um homem caminha para seu quintal e aponta uma arma para a cabeça
do primeiro cachorro a latir.
o disparo é mais alto que todos os latidos.
e então
enquanto o homem volta para a cama
o Morro inteiro fica quieto
assombrado apenas pelo barulho dos pássaros -
dos que podem voar.

e os cachorros voltam para dentro de casa
onde até o carinho de seus donos
parece um bocado com 
trabalho.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

paz

é sentir a lágrima escorrendo pelo rosto
com o único objetivo de molhar o sorriso
é a gargalhada impossível de segurar
velhas dentro de elevadores
o som da palavra emperrado; repetida incansavelmente
todas as praças e seus malucos
as ruas do Menino Deus com cheiro de feijão
a zona sul de pequenas derrotas e vitórias

é criar marcas

é embalar para sentir o vento no rosto
12 anos
e o mesmo vento da primeira vez
o vento que sopra a dor embora
e lhe faz pular como uma criança
se divertir como uma criança

é o IAPI

é conseguir ver aquele sorriso que ela dá
daquele jeito que ela dá
e não entender o sorriso
e não entender o jeito
apenas sentir as orelhas quentes e o estômago frio
e algo dentro de você sabe que algo dentro de você
mudou ao ser inundado por esse sorriso

é o olho brilhando

é saber que sempre é diferente
em cada lugar; em cada minuto;
e mesmo assim
não impor sentido a isso
apenas abraçar o que se quer viver
e entender que sempre se pode rir no final

é ter a certeza que nem todos os poemas acabam.