segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Chuva

Foi numa tarde quente de inverno
- com um tom poético na própria
descrição -
que eu entendi
pela primeira vez
a expressão norte-americana blue.
Meu olhar inocente
encarando as paredes azuis
da quinta série
enquanto a professora explicava
"o azul acalma"
e falhava ao ver o terror
em nossos olhos.
E, nossa!, como nossos olhos brilhavam!
Mas todos os adultos falhavam ao ver o brilho
e assim
iam pouco a pouco matando o que havia dentro
de nós
impondo complicações aos atos mais comuns
tornando difícil falar
difícil conviver
meu deus
difícil sorrir, dar oi, amar sem discriminação
censurando nossa imaginação; gritando: mentira!
E a sala
tornou-se cada vez mais escura
nossos olhos com o tempo
cada vez mais apagados
o azul por todos os lados
enquanto a professora falhava em ouvir nossos gritos.
Nós, cada vez mais eles.
A naturalidade como motivo de exclusão.
A vida cada vez mais em partes. Em porções.

Agora
é inverno de novo, e eu sento de bermuda na minha janela
olhando uma das maiores tempestades que já vi.
Duas quadaras acima
eu vejo uma mulher de vestido colorido
caminhando pela chuva.
O rádio avisa: carros cheios de água, ruas alagadas,
árvores e postes e anjos caídos.
Enquanto essa mulher,
essa linda mulher de vestido colorido
caminha tranquila pela chuva.
Tentando pegar as gotas com a mão
levantando o queixo para sentir o vento
sem se importar com nada
sentindo-se sozinha num mundo que ela não sabe
é meu.
Eu olho para ela
e eu amo essa mulher de vestido colorido
cada passo
o jeito que e vento faz o vestido colorido colar em seu corpo
o olhar que imagino
e sorriso que é somente daquela rua deserta
e tomo como meu.
E mesmo quando não consigo mais vê-la
caminhando para o outro lado da quadra
eu estou ligado a essa mulher de vestido colorido.
Então
meus olhos começam a brilhar novamente,
sinto-os arder em chamas
e ilumino a mulher de vestido colorido
para além das estrelas do mundo
que eu criei.




Lembro que li num romance de Paul Auster
que Dante escreveu a Divína Comédia
para uma mulher que viu apenas duas vezes.

E, claro, isso não significa nada:
todo mundo sabe
escritores mentem
toda hora
mentem
sem saber porque.